terça-feira, 8 de dezembro de 2015

rever a paisagem em si

Em meus deslocamentos busco capturar as mais diversas paisagens e modos de ocupação do solo pelo homem sedento de urbanidade. No entanto, não procuro tecer qualquer crítica a esses modos, assim deixo aberto ao observador os questionamentos sobre a dinâmica dessas ocupações, e suas relações com as habituais paisagens de seu cotidiano.


uma escrita em devir

domingo, 2 de novembro de 2014


Depois dos primeiros longos e lentos movimentos do dia pela casa, afinal dirijo-me ao ateliê. Ligo o computador para atualizar os e-mails e tomar pé das agitações do mundo. As notícias não me parecem nada boas, ou por outra, parecem-me uma repetição monótona dos mesmos erros de sempre – intolerâncias muito antigas, que se arrastam por séculos, gerando diásporas e sangrentas batalhas – emaranhados de difícil desatamento, num império de precariedade e incerteza.[1] Não quero me contaminar, mas também não me situo no grupo dos alienados, e diante desta minha existência, desta minha humanidade, entre desejos, neuroses e medos, procuro fazer minha parte: "Creio que todos nós aqui presentes estamos conscientes da importância e da urgência de dar um passo, de começar a fazer alguma coisa."[2] Assim, abdiquei de certos hábitos, como a compra automatizada do jornal diário (que em minha cidade se resume a um único nome comprometido com o idealismo do "dinheiro-rei"[3], e troquei-o pela intensidade de opiniões divergentes que encontro na internet. Junto a esta renúncia, veio antes até, alguma desobediência e uma tomada de consciência; de saber-me um quase nada, uma ínfima partícula num todo inapreensível e que me assombra, mas ao qual estou irremediavelmente atrelada. Essa é a parte do lobo.

 Mergulho no trabalho como forma de resistência aos excessos e às faltas do mundo. Abro a pasta das imagens mais recentes e me entrego à tarefa de edição das imagens capturadas no dia anterior. A mesa fica próxima à sacada aberta sobre a rua. A manhã embala outros fluxos vitais como o das nuvens e do vento; de pássaros e pequenos insetos que povoam os galhos da grande árvore que se estende imponente sobre a distância entre meu prédio e o outro, e que se eleva na calçada em frente. Vindos da rua, rumores apressados invadem o ateliê e me dão outras notícias do mundo lá fora – sons produzidos por pessoas e veículos que passam com sua pressa diária, enquanto o burburinho das crianças na creche ao lado me faz experimentar a felicidade de suas vozes evocando lembranças de tempos muito distantes. O canto metálico do bem-te-vi parece anunciar o curso geral de minhas expectativas e me convoca a agir. The world crashes in, into my little room.[4]

Enquanto trabalho, a câmera montada no tripé captura no modo movie essas movimentações que, para mim, se traduzem como signos da transitoriedade da vida – talvez resida aí a insistência do uso de uma câmera a beira do esgotamento, que impregna a imagem de ruídos expondo as marcas da passagem do tempo. Instável e borrada, a imagem revela silenciosamente a precariedade e efemeridade da vida, como se tudo estivesse a um passo de se desmanchar. Procuro então tirar proveito desse efeito que a máquina desgastada adiciona às imagens, principalmente naquelas voltadas para o registro da paisagem de minha cidade, há muito vulgarizada nos cartões postais e nas promoções das agências de turismo, como no vídeo Sobre pontes e travessias (2011). Nele, um barco, ou melhor, a proa de um pequeno barco desponta no primeiro plano. A forma branca e triangular contrasta com a cor cinza que satura toda a cena. Plúmbeo é o mar, assim como o céu e alguma paisagem que se entrevê ao fundo banhada em água de chumbo. No segundo plano, o fragmento de uma ponte atravessa o quadro de ponta a ponta, ligando o que não se vê àquilo que não se sabe, e que repousam anônimos fora do plano. Silenciosa, a imagem demanda uma escuta em constante estado de atenção sobre os possíveis sons que a povoam – da ponte, do mar e da paisagem ao longe. O barco não ultrapassa a ponte, não chega mesmo a alcançá-la. Tudo se mantém a distância como se esta fosse a condição daquele que se lança ao mar. Como se a distância guardasse em si mesma a qualidade do inatingível. E ao tomar os deslocamentos em geral e as caminhadas em particular, como uma artista-viajante-contemporânea,sigo a buscar uma outra cidade, mantida à distância, e que não estampa os cartões postais. 


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Séries Gráficas em Processo

A mostra Série Gráficas em Processo em cartaz no mês de dezembro na Galeria EAV, apresenta trabalhos de artistas que vêm desenvolvendo suas pesquisas nas oficinas de serigrafia da EAV-Parque Lage. São muitas as questões e referências apresentadas em suportes variados.
Escolhi mostrar dois trabalhos, o primeiro fala do processo serigráfico com máscaras de papel e pretende ainda dialogar com O Grande Vidro de Marcel Duchamp, por isso o trabalho leva o título de O pequeno vidro. Trata-se de um display em acrílico transparente onde foram sobrepostas três máscaras de papel utilizadas para impressão. Instalada perpendicularmente a uma das paredes da galeria, a peça aciona o espaço que a abriga. Ao aproximar-se do Pequeno Vidro, o visitante percebe-se num outro lugar de onde é possível observar através dos recortes vazados a movimentação na galeria, o que lhe proporciona um olhar voyuerístico. No entanto, esse mesmo visitante-voyeur passa a saber-se também passível de ser observado, o que pode trazer um desconforto até então não experimentado.
Com O Grande Vidro, Duchamp inaugura um espaço topográfico dentro de um outro espaço, o expositivo. A peça, uma lâmina de vidro duplo seccionada horizontalmente em duas partes, já em sua configuração, sugere o que sua transparência de vidro assinala, a duplicidade. Medindo  2,725x1,758m, o Vidro, pela força de sua materialidade mesma, aciona a visibilidade do outro que se encontra no lado oposto, expõe e secciona o espaço no qual se encontra instalado. Para Octávio Paz, "é um enigma e, como todos os enigmas, não é algo que se contempla, mas sim que se decifra."1  Cabe a nós, portanto, experimentá-lo. 

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

instantâneo do vídeo "Sobre ilhas e pontes" 



"Sobre ilhas e pontes", trabalho apresentado na forma de pequena instalação áudio visual na exposição Cidade e Desaparecimento procura trazer a tona algumas questões que perpassam as relações entre arte, seus objetos, lugares e dispositivos de apresentação, assim como acionar a memória da cidade, de seus habitantes e do próprio lugar que os abrigam. O vídeo mostra uma caminhada em um parque da cidade do Rio de Janeiro, lugar pitoresco, que guarda em sua área dois outros espaços criados no século XIX; duas heterotopias, diria Foucault. 

Pensado primeiramente como registro da ação no parque, o vídeo se desdobra em obra, e com essa nova forma adquire certa autonomia podendo tomar diversos espaços de exposição, e nesse caso especificamente, indo além, e envolvendo o projeto e a construção de um dispositivo de apresentação incomum para imagens em vídeo; uma vitrine que trata diretamente da relação com os dispositivos museológicos e a exibição de suas coleções, sejam de objetos antropológicos, etimológicos ou outros tantos dados a ver nos museus, e que também evoca coleções particulares e gabinetes de curiosidades.   

Durante a caminhada, a câmera leva o espectador a refazer seu percurso até uma dessas heterotopias,  e poucas são as pistas que podem revelar o lugar para onde se dirige. Não se procura tratar portanto do imediatamente reconhecível, mas de acionamentos de memórias subjetivas e particulares, de ampliações espaço-temporais. Assim, lentamente, o espectador começa a tornar parte da obra, a vivenciar o espaço que se anuncia e que se vê capturado como imagem pela câmera e emoldurado não só por uma vitrine e passe-partout, mas também pela instituição mesma que os abriga, visitante e obra. Também a música compõem junto as imagens uma cadência que o incita a percorrer o espaço visitado e o captura. Conjugados, som e imagem começam então a convocar outros espaços, como o espaço da memória ao evocar outras temporalidades e ausências; conceitos, como público e privado, real e virtual e questões de vida arte, como pertencimento e não pertencimento, transparência e opacidade.

A medida que caminhamos, colocamos nossos sentidos em alerta a fim de poder exercer uma espécie de domínio sobre nosso corpo e sobre o espaço por onde nos deslocamos, e ao mesmo tempo que avançamos, seja sem rumo predeterminado ou com um propósito definido, vamos deixando para trás traços de nossa passagem por outros lugares caminhos espaços e memórias de encontros e de nós mesmos.  

Durante a caminhada-convite poucas são as referências que cedem ao olhar do visitante-observador-partícipe o prévio reconhecimento do lugar onde se dá a ação e para o qual é transportado; condição de possibilidade de encontros com o imprevisto, posto que o lugar para o qual a câmera avança, lenta mas imperturbavelmente, permanece por longo tempo como invisível presença. 
Instalado dentro da vitrine e envolvidas pelo passe-partout, o trabalho ao mesmo tempo demanda outra postura na aproximação física do visitante, a imagem só pode ser vista por um recorte na grande moldura e a altura do anteparo (da tampa da vitrine) obriga-o a dobrar seu ventre e assim posicionado se vê condenado a experimentar uma posição menos vertical e usual. 

A localização do móvel na galeria também conta com o inesperado. Posicionado à esquerda da entrada da galeria, praticamente atrás de uma das portas, portanto em lugar pouco provável de se localizar um objeto de arte, o visitante apressado só o descobre à saída, depois de ver toda a exposição, e aí então percebe de onde vinha a música que ouvira à distância. Aí então, entre obra visitante e espaço fecha-se um circuito.   


domingo, 9 de outubro de 2011

a ação que rompe a continuidade

Sentada à janela do ônibus, capturo a paisagem externa e o movimento das ruas. Vejo o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara e me pego a imaginar o momento dos viajantes a vislumbrar essa geografia, a registrar suas primeiras e agitadas impressões dessa estonteante paisagem, quando ainda não havia essa outra natureza que é a cidade. Mas ao mesmo tempo em que uma excitação me alenta, também experimento uma melancolia sem que isso me paralise.
Essa condição conduz meu pensamento a Walter Benjamin que, sabendo de perdas irreparáveis, não se permitia paralisar e caminhava pelas ruas de Paris e por suas passagens encontrando, resgatando e dando nova vida aos rastros de singularidades perdidas que assim renovavam e resignificavam o presente em que ele vivia.

Susan Sontag assinala a transmutação do extremo estado de paralisia melancólica em revoltada ação em Benjamin:

                 "No espaço, podemos ser outra pessoa. O escasso senso de orientação em Benjamin e sua incapacidade de interpretar o mapa de uma rua transforma-se numa paixão pelas viagens e no domínio da arte de se perder. O tempo não nos concede muitas oportunidades(...). O espaço, ao contrário, é amplo, fértil de possibilidades, posições, interseções, passagens, desvios, conversões, becos sem saída, ruas de mão única. Na realidade, demasiadas possibilidades. Como o temperamento do saturnino é vagaroso, propenso à indecisão, às vezes, precisamos abrir caminho de faca na mão. Às vezes, acabamos virando a faca contra nós mesmos."¹

Imbuído de uma melancolia que não o abatia, mas sim o provocava, Benjamin saía a recolher em notas, em fragmentos, espaços poéticos de uma cidade, seus viventes e os fugidios traços que remetiam àqueles que já não estavam mais lá; procurava o beco, o que não estava explicitamente visível; a cidade fora de seus aspectos mais tradicionais, onde a história não está mais dada, pronta e acabada como um discurso contínuo e homogêneo; onde a história se apresenta como problema que se recoloca constantemente e não como resposta já concluída antes mesmo de se colocar a questão. 

Benjamin indagava justamente sobre o que o historiador do convencional propositadamente encobriu ou por conivência deixou que se ocultasse. Para Benjamin é preciso "pentear a história a contrapelo"², é preciso aproveitar a fugidia oportunidade de ler as outras histórias que repentina e quase imperceptivelmente vão despontando em pequenas percepções permitindo que se rompa a continuidade de um discurso costumeiro que as houvesse ocultado ou destruído para sempre.

O tempo do melancólico é o da interrupção do tempo contínuo. Uma forma sagaz de pensar que não procura negar a ilusão de um tempo ininterrupto em direção ao progresso, mas sim criticá-lo, divergindo de sua ininterrupta marcha; rompendo-a e mudando seu ritmo para que dela possam brotar desvios capazes de criar novas oportunidades de vida para os que hoje demandam novas possibilidades. É como reacender uma chama que se apagara. 
Mas isso não acontece através de uma esperança que aguarda um milagre capaz de contornar as possibilidades e impossibilidades já conhecidas. É preciso romper as relações com o excessivo peso do que já se conhece como possível para que se possa ver o quanto esse conhecimento é paralisante e interdita a ação.

Tomada então por essa melancolia benjaminiana aliada a uma esperança ativa, caminho pela cidade no intuito de resgatar pequenas capturas de sob a ilusão de um cotidiano que se repetiria como o mesmo todos os dias; seja no ato da intervenção nas rua e nos meios de transporte, seja na forma de fotografias e vídeos ou à outras tantas artísticas ou não.  Essas combinações trazem a tona novos significados que não resultam de minha adesão a nenhuma intenção prévia de expor um determinado ponto de vista sobre o que encontro pelo caminho, mas fazem emergir novas visões e desvios sobre as noções comuns sobre o dia-a-dia.
Preciso esvaziar-me do já visto para poder ver um novo presente, para poder sentir a tristeza de um modo jamais visto, capaz de atear fogo aos meus sentidos; abandonar o já conhecido e as antigas esperanças e expectativas para poder construir novos modos de agir esperançosamente.

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¹ SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: LPM, 1986, pp.90-91.
² BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese VII, apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". São Paulo: Boitempo, 2005, p.70.