segunda-feira, 23 de maio de 2011

Rotina

O despertador toca, são seis horas da manhã, é difícil levantar, desejo mais alguns minutos de sono. Novamente o despertador responde a hora programada, permito-me mais dez minutos e novamente o despertador toca o mesmo toque de todo dia, agora não dá mais; se não levantar nesse exato momento, acabo atropelada na minha própria lentidão. Alongo-me para que o corpo possa se preparar para um mesmo longo dia. A agenda está cheia. Abro a porta do quarto e a gata sai na minha frente. Ela já tinha dado sinais de que era dia antes mesmo do despertador tocar.  Vou até a área de serviço e encontro o pote de ração sobre a mesa; abro-o e sirvo-a. Fecho o pote, recoloco-o no mesmo lugar, e me dirijo ao banheiro. Antes passo pela cozinha, tomo dois copos de água para ativar o corpo, e alcanço a chaleira em cima do fogão. Dirijo-me à área onde se localiza o filtro, coloco água na chaleira e retorno à cozinha. O acendedor automático não quer funcionar. Pego a caixa de fósforos, acendo o fogo para a chaleira e o forno para o pão. Primeira checagem do dia: ok tudo certo; agora banho! Demoro-me ao mesmo tempo em que experimento a deliciosa sensação da água quase fria sobre meu corpo  e o cheiro doce do xampu e sabonete. Já ouvi o apito da chaleira longo e contínuo - talvez seja esse o som que embala a rotina cotidiana. Experimento um pequeno frisson; talvez já tenha que acelerar o ritmo, demorei muito no banho e ainda tenho que pôr a mesa para filha e marido que também vão sair! Esqueci de tirar e pendurar a roupa que botei pra lavar na máquina ontem à noite; será que ainda dá tempo? Antes de sair, olho-me no espelho: não tem jeito, é a repetição da rotina que começa a ocupar mais um dia sempre igual. Desço as escadas. Aperto os botões que abrem a porta e o portão que me leva à rua. Lembro então de um verso de Fernando Pessoa que diz: "Entre o que vive e a vida pra que lado corre o rio?" Alcanço a calçada e começo a descer a rua. Pessoas passam por mim levando também seus roteiros diários que se unem ao meu e a tantos outros criando um fluxo maior que igualmente se repete formando montantes e vazantes que compõem as naturais marés de nosso ambiente urbano, colocando em questão as tradicionais separações entre o natural e o artificial. A paisagem já é outra quando encontro a esquina e me deparo com a rua principal, grande via de acesso a outros bairros da cidade onde passam os mais variados tipos de veículos - caminhões carros particulares táxis ambulâncias diversas linhas de ônibus motocicletas triciclos e bicicletas num vaivém contínuo (no céu vejo helicópteros). Seu tráfego pesado e intenso ainda que pareça caótico apenas segue uma complexa organização formando mais um sistema que se entremeia de modo muito complexo em outros sistemas. Em sua longa extensão, rua e bairro abrigam ainda outros lugares que ajudam a engrossar seu trânsito ao longo do dia como prédios comerciais empresas clínicas hospital público escolas praças clubes mercados bares lanchonetes restaurantes farmácias bancos  livraria  áreas de lazer bancas de jornais.
Dirijo-me ao ponto de ônibus. Espero o sinal de trânsito parar o fluxo de veículos em mão-dupla. Atravesso a faixa de pedestres. O ritmo das travessias - minha e dos outros - é medido pela pressa e pelo alcance das pernas. O sinal começa a piscar, e novamente sãos os veículos que dominam a cena. Chego ao ponto; faço sinal e o ônibus passa ao largo. Subo no que vem a seguir e que está sempre cheio. Tenho que viajar em pé. Nesse horário é assim mesmo, estão todos se deslocando de casa para o trabalho... Cumprimento o motorista que não responde. O dinheiro trocado, como de costume, está na mão. Cumprimento o cobrador que parece não me ver. Passo pela roleta estreita e me espremo entre os outros passageiros, poucos se olham; quantos se veem? Alguém fala ao celular, e a conversa dita as horas dos acontecimentos. O ônibus segue em direção ao centro. A viagem até o bairro seguinte é lenta. Lá chegando percebo que em sua rua principal a coisa é a mesma; ônibus carros táxis transeuntes. Depois de uma longa curva o ônibus alcança a praia. Lá fora tudo parece estar em seu devido lugar. Algumas pessoas saltam outras entram, e a viagem segue nesse ritmo que parece interminável. Por sorte consigo um assento depois de grande percurso. Alguém faz sinal; o ônibus para e novamente pessoas sobem outras descem e recomeça tudo de novo... Sigo o caminho num cego automatismo, já nem reparo a paisagem. Por um momento me sinto em profundo estado de torpor. Como a figura alada na gravura Melencolia I de Dürer, lanço um olhar para um outro lugar; um fora de campo que me leva para além dos limites circunscritos à repetição da cena cotidiana, assim a tristeza se desfaz preenchida pela alegria de saber que posso habitar outros lugares. Quando no metrô percebo semelhante opressão. No vagão o ambiente é quase claustrofóbico e o deslocamento subterrâneo aponta para camadas compactadas e emparedamentos - metáfora à condição de aprisionamento involuntário em que muitos se encontram. Cheio de mensagens subliminares adestramentos e esgotamentos, o vagão é um lugar com pouco ou quase nenhum espaço de respiração, além disso, é em si mesmo um espaço de confinamento; é absolutamente necessário que suas portas mantenham-se hermeticamente fechadas durante os percursos dentro dos túneis. 

Cidadão consciente. É preciso que cada um faça a sua parte. Contribua. Atenção. Cuidado. Esquerda. Direita. Para frente. Ande. Pare. Faixa de pedestre. O sinal pisca. Agora é a hora de atravessar. Corra. Seja um. Compre isso. Faça assim. Patrulha. Choque de ordem. Fumante aqui nem pensar! Beba refrigerante diet. Lugar de ficar. Lugar de passar. Setor A. Setor B. Setor G'. Conformação. Rua. Caminho do trabalho. Caminho de casa. Passarela. Faixa contínua. Faixa compartilhada. Cone. Ordem. Mantenha-se a direita. Trânsito lento. Táxi ônibus metrô. Prezado cliente, respeite a faixa amarela. Vagão exclusivo para mulheres. Sobe. Desce. Escada rolante. No ônibus há uma câmera e um monitor exibindo dicas conselhos e notícias banais. No elevador também percebo uma câmera. Controle. Outros olhos eletrônicos monitoram os fluxos de deslocamentos do tráfego e a nós também, já chegaram até mesmo às praias. 

Margens bordas limites e fronteiras. Faixas cercas e muros criam barreiras e separam uns dos outros. Sinto a pressão dos aparatos ordenadores das regras diárias de divisão dos espaços coletivos.

Peixes no aquário.