domingo, 9 de outubro de 2011

a ação que rompe a continuidade

Sentada à janela do ônibus, capturo a paisagem externa e o movimento das ruas. Vejo o Pão de Açúcar e a Baía de Guanabara e me pego a imaginar o momento dos viajantes a vislumbrar essa geografia, a registrar suas primeiras e agitadas impressões dessa estonteante paisagem, quando ainda não havia essa outra natureza que é a cidade. Mas ao mesmo tempo em que uma excitação me alenta, também experimento uma melancolia sem que isso me paralise.
Essa condição conduz meu pensamento a Walter Benjamin que, sabendo de perdas irreparáveis, não se permitia paralisar e caminhava pelas ruas de Paris e por suas passagens encontrando, resgatando e dando nova vida aos rastros de singularidades perdidas que assim renovavam e resignificavam o presente em que ele vivia.

Susan Sontag assinala a transmutação do extremo estado de paralisia melancólica em revoltada ação em Benjamin:

                 "No espaço, podemos ser outra pessoa. O escasso senso de orientação em Benjamin e sua incapacidade de interpretar o mapa de uma rua transforma-se numa paixão pelas viagens e no domínio da arte de se perder. O tempo não nos concede muitas oportunidades(...). O espaço, ao contrário, é amplo, fértil de possibilidades, posições, interseções, passagens, desvios, conversões, becos sem saída, ruas de mão única. Na realidade, demasiadas possibilidades. Como o temperamento do saturnino é vagaroso, propenso à indecisão, às vezes, precisamos abrir caminho de faca na mão. Às vezes, acabamos virando a faca contra nós mesmos."¹

Imbuído de uma melancolia que não o abatia, mas sim o provocava, Benjamin saía a recolher em notas, em fragmentos, espaços poéticos de uma cidade, seus viventes e os fugidios traços que remetiam àqueles que já não estavam mais lá; procurava o beco, o que não estava explicitamente visível; a cidade fora de seus aspectos mais tradicionais, onde a história não está mais dada, pronta e acabada como um discurso contínuo e homogêneo; onde a história se apresenta como problema que se recoloca constantemente e não como resposta já concluída antes mesmo de se colocar a questão. 

Benjamin indagava justamente sobre o que o historiador do convencional propositadamente encobriu ou por conivência deixou que se ocultasse. Para Benjamin é preciso "pentear a história a contrapelo"², é preciso aproveitar a fugidia oportunidade de ler as outras histórias que repentina e quase imperceptivelmente vão despontando em pequenas percepções permitindo que se rompa a continuidade de um discurso costumeiro que as houvesse ocultado ou destruído para sempre.

O tempo do melancólico é o da interrupção do tempo contínuo. Uma forma sagaz de pensar que não procura negar a ilusão de um tempo ininterrupto em direção ao progresso, mas sim criticá-lo, divergindo de sua ininterrupta marcha; rompendo-a e mudando seu ritmo para que dela possam brotar desvios capazes de criar novas oportunidades de vida para os que hoje demandam novas possibilidades. É como reacender uma chama que se apagara. 
Mas isso não acontece através de uma esperança que aguarda um milagre capaz de contornar as possibilidades e impossibilidades já conhecidas. É preciso romper as relações com o excessivo peso do que já se conhece como possível para que se possa ver o quanto esse conhecimento é paralisante e interdita a ação.

Tomada então por essa melancolia benjaminiana aliada a uma esperança ativa, caminho pela cidade no intuito de resgatar pequenas capturas de sob a ilusão de um cotidiano que se repetiria como o mesmo todos os dias; seja no ato da intervenção nas rua e nos meios de transporte, seja na forma de fotografias e vídeos ou à outras tantas artísticas ou não.  Essas combinações trazem a tona novos significados que não resultam de minha adesão a nenhuma intenção prévia de expor um determinado ponto de vista sobre o que encontro pelo caminho, mas fazem emergir novas visões e desvios sobre as noções comuns sobre o dia-a-dia.
Preciso esvaziar-me do já visto para poder ver um novo presente, para poder sentir a tristeza de um modo jamais visto, capaz de atear fogo aos meus sentidos; abandonar o já conhecido e as antigas esperanças e expectativas para poder construir novos modos de agir esperançosamente.

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¹ SONTAG, Susan. Sob o signo de Saturno. Porto Alegre: LPM, 1986, pp.90-91.
² BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Tese VII, apud LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". São Paulo: Boitempo, 2005, p.70.

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